domingo, 20 de setembro de 2009

O menino que carregava água na peneira.

Algumas vezes a pessoa se sente tão impar, tão diferente de todas  as  outras, que brota um vazio imensurável na  alma...


Por vezes o  paliativo para o vazio é  recorrer às histórias criadas  por seres  que carregam água em  peneiras... nos  livros,nas palavras,  ou talvez até se aventurar a peneirar água...

O menino  que  carregava  água na  peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos
Poema de Manoel de Barros
Retirado do livro: Exercícios de ser criança:
O Menino que carregava água na peneira
Editora Salamandra

2 comentários:

  1. Lindo poema Raquel, realmente o hábito de ler e escrever também pode ser usado para preencher vazios !

    Em um dias destes , estava esperando num terminal de ônibus uma senhora estava desesperada , pois não sabia ler e a menina que servia a ela como ponto de referência de qual o destino do carro não se encontrava.
    Deve ser um vazio tão grande não saber ler tanto com uma limitação da visão .

    Bjo

    ResponderExcluir
  2. Que lindo! Nossa... Um maravilhoso poema que nos trás uma bela mensagem!
    O vázio que nos instiga a completá-lo com nossas peraltagens, nossos sonhos... Através da escrita ou imagens.
    Sorte temos nós que conseguimos ler e escrever.. Pois assim, podemos liberar nossas criações, nossas divagações.
    Beijo e adorei seu blog.

    ResponderExcluir

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O sonho encheu a noite/Extravasou pro meu dia/Encheu minha vida/E é dele que eu vou viver/Porque sonho não morre. Adélia Prado
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